19 de set. de 2011

Da minha passagem por Brasília.


 Janaína Tatim - Estudante de Letras da UFRGS
          Deve haver mais de duas motivações que me fizerem decidir ir para Brasília naquela semana, imagino que muitas delas habitavam as regiões de sombras do meu inconsciente, e por tanto, não tenho como objetivá-las por enquanto. Por isso falo das duas que são claras pra mim, que estão no nível de serem elaboradas pelo verbo e são capazes de perpassar essa experiência. Antes de tudo, é uma questão de relação com o Brasil e seus signos. Desde bastante tempo, quando comecei a pensar a minha vida, o meu lugar no mundo, eu me vejo cada vez mais entrelaçada à história e situação passada e presente da terrinha. Nesse sentido, Brasília tem uma carga robusta de simbologia, assim, conhecer a capital do meu país na circunstância de luta social me pareceu também simbólico pra minha vida, pra vida de alguém que não consegue desentranhar o Brasil de dentro de si. Enfim, duas motivações se evidenciam então: uma com um caráter de marco na minha vida pessoal altamente simbólico e outra, também atrelada a essa, mas com um desvio autônomo, a do envolvimento político, da luta, da participação coletiva, uma coisa em que eu acredito e com a qual me relaciono pela lembrança das muitas pessoas que compartilham esse sentimento comigo, especialmente as que morrem nas mãos dos militares.
       Com essas coisas fervendo dentro, versejei comigo: “Eu vou, porque não? Porque não?”. Resolvi aceitar o convite pra viagem, que veio das meninas do CEL, a Nate, a Graci. Elas me explicaram que o propósito era participar da Jornada de Lutas, que naquela semana se concretizaria numa grande marcha em Brasília pelos 10% do PIB para a educação. Nossa viagem foi toda financiada pelo ANDES (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior) desde o ônibus até a alimentação.
          A marcha foi uma conjunção de diversos setores dos movimentos sociais atuantes hoje no Brasil, como sindicatos e organizações de trabalhadores urbanos – desde os servidores do ensino técnico e superior até um número bem expressivo de metalúrgicos vindos de São José dos Campos e outras regiões que já habitam o imaginário desse circuito histórico de luta sindical, lembro inclusive de ter tido a oportunidade de trocar uma idéia com alguns metalúrgicos numa parada que fizemos em São Paulo; eles estavam indo pra marcha! –, também se juntaram a nós os trabalhadores rurais, da Via Campesina e, especialmente, do MST, que marchou exatamente ao lado dos estudantes – nós cantávamos: “sem terra é meu amigo, mexeu com ele mexeu comigo” e eles respondiam “estudante é meu amigo, mexeu com ele mexeu comigo” –, como se sabe, o MST é da base governista, então tê-los ao nosso lado, lutando por uma pauta que vai contra os interesses do governo foi bastante significativo. Por fim, claro, estava presente, e encabeçando a marcha, nós, o movimento estudantil; aqui quero lembrar a total ausência da UNE que foi convidada a participar da Marcha mas nem se apresentou.
      Presente mesmo estava a ANEL (Assembléia Nacional dos Estudantes Livre) com ônibus de todos os cantos do Brasil, uma organização nova que vem se propondo a representar de verdade os interesses dos estudantes, já que a UNE virou pelego do governo e dos partidos. Há muitas diferenças significativas entre a ANEL e a UNE, a primeira delas é a questão do financiamento da entidade que tem tudo a ver com as possibilidade de representação que a organização vai poder exercer: a UNE recebe dinheiro diretamente do governo federal e de alguns ministérios, como o dos Transportes, além disso também recebe grana do PMDB (!?), quer dizer, quando a discussão é o passe livre dos estudantes, lá está o rabinho preso da UNE que não pode/quer se manifestar; quando a discussão é qual deveria ser o destino dos 10% do PIB, caso viéssemos a consegui-lo, lá estaria a impossibilidade da UNE de ir à raiz do problema, já que eles, claro, também defendem a bandeira dos 10%, mas acham que o investimento deve ir para as atuais políticas governistas, como o Prouni (dinheiro público alimentando a rede privada) e o Reuni (grande falcatrua que supostamente amplia vagas, mas não dá condições de permanência do estudante na universidade pública), só para acrescentar um dado referente a essa questão: o recurso gasto com um aluno do Prouni equivale ao de três alunos da universidade pública, então veja se é uma política que tá interessada em promover a educação ou o bolso dos donos das instituições privadas. Já a ANEL foi à raiz do problema, nós queremos sim os 10% e tem que ser pra já e tem que ser dinheiro público para universidade pública, por isso a gente diz não ao PNE (Plano Nacional de Educação) do governo que será votado esse ano (fica de olho), nele, além de outros pontos altamente discutíveis, consta que os 7% que estavam cotados desde o antigo PNE e que não foram atingidos (não se investiu nem 4% do PIB no financiamento da educação) sejam agora meta para a próxima década, quer dizer, no início da década passada foram fixados os 7% e não foram cumpridos, agora, nesse novo plano que é também decenal, ou seja, suas metas podem ser cumpridas até 2020, querem fixar os mesmo 7%: claro está: se depender do governo o troço não vai avançar mesmo e vamos ter aí mais uma geração nas mesmas condições porcas que a gente vê atualmente. Há outros pontos importantes que diferenciam diametralmente a ANEL da UNE, alguns deles eu vou comentar a partir das situações que ocorreram na viagem, por hora, digo que vale a pena ajudar a construir e consolidar a ANEL como contraponto à UNE.
        Partimos então na segunda-feira à noite, para chegarmos lá na quarta-feira de manhã. E nessa seqüência, fomos direto para a Marcha. Que foi bem grande, a maior que já participei, cerca de 20 mil pessoas. Como já disse, os estudantes e um pequeno grupo representativo de cada um dos movimentos, que estavam levando também suas pautas, foram bem na frente e ao nosso lado, em coluna estava o MST. Lembro de olhar para trás com meus companheiros e não ver o fim da Marcha! Na rua, recebemos o apoio de muitas pessoas, especialmente motoristas do transporte urbano e de caminhoneiros! A uns 50 metros de distância da gente, do outro lado da via, estava uma tropa de policiais a cavalo, uma cena meio assustadora, por alguma lembrança obscura que pode suscitar de outros tempos... Mas nenhum problema com os home. Seguimos com gritos de ordem, cartazes e bandeiras até o Planalto, ah! esqueci de dizer, também lembramos dos estudantes chilenos e levamos muitos cartazes em apoio a eles. O sol estava a pino e tostando bonito os corpinhos que se mexiam na rua, o ar era seco de doer, não preciso nem dizer como passei sede e fiquei com grandes queimaduras pelos braços, peito e rosto! (mas valeu a pena e não hesitaria em me tostar toda de novo pela causa.) Na frente do Palácio, fizemos um 10% humano gigante com os estudantes, e eu fui, em ocasião, parte do número 1 e depois do número 0.
        Seguimos, depois, para a frente do Ministério da Educação: sim, o famigerado MEC. Lá, ocupamos a rua (nem preciso dizer que a polícia protegeu em peso a porta)... e fizemos uma espécie de assembléia, em que tomamos conhecimento da situação de universidades e escolas de todo o Brasil, a coisa tá russa mesmo! Havia, naquela semana, greve dos servidores em mais de 18 estados, dezenas de reitorias ocupadas em todo o país e no mínimo três universidades em greve geral de estudantes, professores e servidores. A gente também ficou sabendo de várias barbaridades que estão ocorrendo por aí, como a consideração do amável governador do Ceará: “quem quer dar aula faz isso por gosto e não pelo salário” e das situações materiais caóticas de inúmeras instituições. Conseguimos colocar lá dentro do MEC uma comissão representativa dos estudantes para “caçar” o ministro Haddad, inclusive junto foi aquela professora que ficou famosa na internet pelo discurso que fez na câmara sobre o salário lamentável dos professores, e de fato, conseguimos, ele recebeu o manifesto da comissão e se “comprometeu” com várias pautas. Não nos iludimos, no entanto, ninguém é trocha de crer no compromisso do ministro... enfim, vamos continuar “caçando” o Haddad. Nosso próximo grande passo, articulado com os movimentos sociais, é realizar um plebiscito para que o povo responda se quer ou não os 10% da educação! Tô muito pilhada para que isso se efetive.
         Depois, o resto da tarde foi de discussões entre os vários movimentos sociais, oportunidade novamente única de tomar conhecimento do que verdadeiramente anda acontecendo atualmente e que a gente nunca fica sabendo...
No dia seguinte ao da Marcha, aconteceu na UnB a V Assembléia Nacional da ANEL, ali pude conhecer melhor a organização, o funcionamento e as pautas desse novo movimento estudantil e fiquei especialmente contente e satisfeita com o que vi. Houve grupos descentralizados de discussão de pautas que depois foram levadas à plenária geral para serem aprovadas por todos. Essa é uma estrutura que não se vê mais na UNE; na ANEL a discussão e a intervenção é de fato acessível a todos que participam. Sei que esse relato já está demasiado longo e eu poderia ficar aqui falando de cada uma das pautas que foram discutidas, pela sua relevância, mas não vou fazer, não se preocupe. Apenas não poderia deixar de falar de uma das bandeiras que mais me emocionam e me orgulham e que está super a frente na ANEL: o movimento contra as opressões, em especial o machismo, o racismo e a homofobia. A ANEL realmente se posiciona com relação a esse tema e leva ele a cabo enquanto política da organização. Houve um caso de machismo na festa de confraternização cultural da ANEL, na noite anterior ao congresso, em que um colega da delegação aqui do Rio Grande do Sul, estando muito bêbado e chapada, decidiu agarrar e agredir verbalmente uma moça da UnB, também participante do movimento estudantil, ninguém fez vistas grossas para o caso, muito antes pelo contrário, ele foi levado ao conhecimento de todos, no dia seguinte, para o congresso, e exigiu-se a retratação pública do rapaz. É claro que ele não deu as caras, mas depois, em plenária em nosso próprio ônibus, na volta para Porto Alegre, ele se retratou diante da nossa delegação, retratação que vai ser oficializada nos meios públicos da ANEL e no próximo congresso. Outro acontecimento que me deixou muito emocionada, foi o protesto que nós fizemos, ao final do congresso, por toda a UnB, em repúdio a um caso de estupro, que ocorreu no campi, de uma aluna que estava indo para a parada de ônibus, há algumas semanas atrás. Nem o DCE da UnB nem a reitoria se manifestou sobre o acaso (que aliás não é o primeiro), ele foi literalmente silenciado, e nós, em um grupo bem considerável, caminhamos do prédio das salas de aula (O Minhocão) até a reitoria, chegando lá subimos as escadas até o gabinete do reitor com gritos e canções de ordem contra o machismo, o racismo e a homofobia, entre elas: “eu sou mulher, quero respeito, mulher não é só bunda e peito”, “machistas, homofóbicos: NÃO PASSARÃO” e “se cuida, se cuida, se cuida seu machista, americana latina vai ser toda feminista”, você consegue imaginar o quão emocionante é ver centenas de jovens, homens e mulheres, defendendo o direito das mulheres, dos homossexuais e dos negros, dizendo não ao silenciamento da violência, se afirmando com toda a força contra fatos absurdos como esse da UnB? Como foi bonito olhar pro lado e ver todos meus companheiros homens gritando comigo, com toda vontade “eu sou mulher, quero respeito...”, ninguém vai me convencer de que isso é bobagem, de que é inútil... certamente pra quem sofre violência sexual não é! Deixamos nosso manifesto na porta do reitor e percorremos o resto do campi com nosso protesto, não precisa nem dizer que as pessoas olhavam embasbacadas pra gente... Foi um momento sublime, poucas vezes, estando entre tanta gente eu me senti protegida e respeitada enquanto ser humano: um miligrama de igualdade, um sentimento de potencialização de humanidade inexplicável.
Depois, foi a volta, sem mais delongas, não vou me ater às 38 horas de viagens, às inúmeras paradas que fizemos, às paisagens de cada local por que passamos, às discussões e plenárias que foram feitas dentro do próprio ônibus, que tinha gente de várias universidades do estado, até de escolas e um pessoal bacana de Santa Catarina. Dessa galera, só tenho a dizer que são pessoas muito legais e que eu me orgulho de poder contar com eles pra luta e de poder compartilhar ideais e sentimentos. Esse tipo de experiência pelo coletivo é inigualável, foi como uma fissura rachando esse nosso tempo e espaço, ou talvez como uma rosa irrompendo no meio do asfalto, e eu me senti no bojo dessa rosa, vivenciando um sentimento oceânico, e partilhando esse mesmo sentimento com 20 mil, 500 ou 50 pessoas, ou uma sequer, que segurou a minha mão.